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Trabalho e ludicidade na infância, entrevista com a pesquisadora Emilene Sousa

 Por: Michele da Costa Souza

Professora da Universidade Federal do Maranhão há 13 anos, Emilene Leite de Sousa é doutora em Antropologia Social e Mestre em Sociologia. A escolha da professora se deu pelo fato dela pesquisar sobre trabalho e ludicidade na infância, há pelo menos 15 anos, tendo vasta experiência em pesquisas com crianças e um grande número de publicações a respeito. Na entrevista que segue, Emilene fala da importância de seu estudo com crianças, na demora dos pesquisadores em perceber a criança como “outro”, de como as crianças são importantes na sociedade e que tudo o que elas fazem é expresso por meio de suas brincadeiras (ludicidade).

Ciência UFMA: O que a levou a estudar infância, mais precisamente infância indígena?

Emilene Leite de Sousa: Na verdade, eu atuava na graduação como bolsista do Pibic, CNPc com Juventude Rural, e na época entrevistava os jovens no roçado, e os acompanhava aonde iam e as crianças interferiam na entrevista o tempo inteiro. Então, como eu era muito imatura ainda era graduanda, dizia que atrapalhavam minhas entrevistas porque durante a realização delas de repente “voava” uma pedra vinda de um menino com estilingue, as crianças passavam correndo com algazarra, já tinham transformado o cabo da enxada em cavalinho, aí comecei a atentar para isso. Eu dizia: essas crianças não estão tendo a infância usurpada? Por que estão vivenciando o trabalho infantil que é explorador, usurpador da infância no roçado, porque elas parecem estar se divertindo? Como é que elas fazem isso sorrindo o tempo inteiro? Elas estão brincando no roçado? E quando fui preparar meu projeto para a seleção do mestrado, fiz um projeto que era sobre o trabalho e a ludicidade, para investigar como as crianças Capuxu – um grupo que pesquiso até hoje do sertão da Paraíba – trabalhavam brincando, para entender de fato como funciona o trabalho infantil, atentar para as suas particularidades a depender do contexto social-cultural e verificar como funciona a brincadeira na infância. E foi assim que comecei a pesquisar sobre a infância. Comecei com a infância camponesa, como disse. E fiquei por um longo período pesquisando infância camponesa. Quando cheguei aqui no Maranhão, como o Maranhão é um Estado rico em termos de etnias e em diversidades étnicas, são pelo menos nove etnias a partir dos dois troncos lingüísticos – Tupiguarani e Macro-jê – logo pensei em estudar infância indígena. Tinha tido uma experiência também com infância urbana em São Luís (uma digressão) então comecei a estudar infância indígena e também a infância das crianças quebradeiras de coco babaçu, que foi algo que fiz depois, para comparar e tentar contrapor sempre a partir desse viés de trabalho e ludicidade.

Por que a senhora acha importante estudar esse assunto, o que fez com que se interessasse para fazer essa pesquisa e qual a importância dela para a sociedade?

Eu pertenço a uma área da antropologia chamada antropologia da criança que é um campo relativamente novo na antropologia. Durante muito tempo a antropologia negligenciou as crianças. A antropologia de modo geral, deixou de perceber a criança em campo, então ela fazia um discurso de valorização do nativo, de ouvir o nativo, de perceber o outro, de tomar o “outro” como um importante interlocutor nas mais diversas culturas, nas mais diversas situações, só que nunca entendia que esse outro também era a criança. A verdade é que as crianças têm importância sobre todos os aspectos da cultura, elas fazem parte daquela cultura e estão produzindo-a bem como sendo afetadas por ela, impactadas por essa cultura que transformam, significam essa cultura tanto quanto qualquer outro adulto e durante muito tempo ao longo da história da antropologia elas foram negligenciadas, a gente pensava um tema para objeto, qualquer um que fosse: violência, política, economia, família, parentesco, sabe, e nós ouvíamos todos os adultos, comparávamos quase todas as variáveis idosos, homens e mulheres, mas não considerávamos as crianças. Então o que a gente está tentando dizer é que não precisa necessariamente de um campo específico da antropologia da criança para pesquisá-las, o que a gente precisa é quando estiver em campo considerar todas as variáveis, todos os agentes e todos os sujeitos daquele campo e isso, é óbvio, inclui as crianças. A importância é essa, que as crianças nos mostram aspectos de uma determinada realidade sócio-cultural de um modo muito peculiar que só elas podem nos mostrar, então há uma série de significados que escapam aos adultos, que nos escapam quando nós não consideramos as crianças na pesquisa, mas apenas os adultos. Elas têm um modo peculiar de enxergar a realidade de uma maneira que só elas podem fazer, por isso a importância de ouvi-las. Clarice Cohn diz que “as crianças não sabem menos, elas sabem outras coisas”, elas fazem outra leitura do mundo que também nos interessa. É isso que a antropologia da criança está dizendo o tempo inteiro.

Por que é tão difícil encontrar pesquisas e estudos sobre etnias indígenas no Maranhão sendo ele um Estado rico em diversidades indígenas?

Emilene Sousa

Há clássicos da antropologia sobre povos indígenas, vou citar o Darcy Ribeiro com a obra: Diários índios que foi na verdade a publicação da Berta Ribeiro, esposa dele, das cartas que ele a enviava na época em que ficou entre os Urubus-Kaapor. Nós temos obras clássicas da antropologia sobre os povos indígenas do Maranhão. Agora esse aparente desinteresse, que na verdade não é isso, é muito mais uma questão de dificuldade, eu atribuo ao seguinte fator: aqui no Maranhão, só existe Ciências Sociais em São Luís, e São Luís é muito rica especialmente no que diz respeito à cultura afrodescendente, diálogo com o movimento negro, pesquisas sobre os quilombolas, lá a gente construiu um curso muito voltado às questões de religiosidade e étnicas como as sobre os quilombolas. Você tem geograficamente, muito mais perto deles uma série de comunidades quilombolas e pesqueiras. O Maranhão é um Estado grande, então não dá para atravessá-lo sem recurso para fazer pesquisa. Por causa dessa distância eles terminaram se dedicando a objetos de estudo que estavam mais próximos geograficamente. Foram poucos os cientistas sociais, como a Professora Elizabete Coelho, que se aventuraram em atravessar o Estado para estudar povos indígenas daqui do sudoeste do Maranhão. Tanto é que têm pesquisadores do Tocantins com vários estudos sobre esses povos porque estão geograficamente mais próximos do que os que estão em São Luís.

Em seu artigo sobre: A ludicidade das crianças Tentehar-Guajajara, a srª afirma que existem poucos estudos voltados para a ludicidade na infância. Qual seria o problema/dificuldade desses pesquisadores que os impedem de realizar esse tipo de estudo?

Pela mesma razão que eu dizia que as pessoas não pesquisam crianças. Quando a gente fala de criança imediatamente a gente remete a ludicidade, porque as crianças elas formatam as suas ações ludicamente. Sempre que for dada a criança oportunidade de agir ela vai formatar as suas ações em termos lúdicos. Uma coisa na verdade meio que explica a outra. Os antropólogos, não levam as crianças a sério porque acham que tudo o que elas fazem e tudo que elas sabem é brincar e na verdade a brincadeira também é coisa séria, a ludicidade é séria e ela revela muito a respeito da cultura de um povo. Através da ludicidade as crianças nos dizem muito a respeito não só delas mesmas, mas de todo o universo material e simbólico em que estão inseridas. A ludicidade também comunica algo, o brincar ele não está livre de todas estas construções sociais, pelo contrário, ele revela todas essas construções, ela passa por todas as simbologias de uma determinada cultura. Por isso é importante ouvir as crianças e ouvi-las dentro dessas formas de falar peculiar, como o é a própria ludicidade. Então, como a antropologia negligenciou as crianças durante um longo período de tempo, parte desta negligência era porque eles achavam que as crianças não tinham coisas importantes para dizer, não tinham compreensão do mundo porque elas só sabiam brincar. Quando na verdade elas estavam falando através das suas ações, há outros modos de falar que não só a oralidade, elas estavam falando através das suas brincadeiras.

Então o artigo fala que a brincadeira é uma forma de representar tudo aquilo que as crianças absorvem?

Não só tudo aquilo que elas absorvem, porque as crianças não só absorvem. É exatamente nesse erro que a gente recai, é essa a armadilha. Porque elas não só absorvem, elas constroem cultura, elas produzem cultura, elas significam e ressignificam como nós adultos. Então o papel da criança na cultura não é só absorver, não é só aprender no sentido de que a gente é que vai transmitir algo pra elas, não. Elas têm representações próprias sobre todas as coisas, por isso que nós estamos dizemos que é importante ouvi-las. Um pesquisador que esteja em campo e ouve todas as variáveis possíveis, todas as categorias de seus sujeitos: homens e mulheres, adultos e idosos e não ouça as crianças sobre determinado evento, determinado fato social seja qual for o seu objeto, ele não terá uma pesquisa completa porque ele não ouviu as crianças. As crianças fazem diferentes leituras de mundo e isso interessa a antropologia porque elas também são sujeitos, também pertencem aquele campo a peculiaridade reside no fato de que elas fazem isso ludicamente.

Em um parágrafo de seu artigo sobre ludicidade, a srª cita a fala de Simmel (1983), onde ele diz que o conteúdo da socialização é sempre lúdico. Como isso se daria de fato?

O Simmel tem uma proposta muito interessante para entender sociabilidade e socialização. A ideia dele é de que sociabilidade é a capacidade de que todos nós temos de nos socializar.  Nós nascemos seres naturais e nos tornamos seres sociais ou somos seres humanos e nos tornamos seres sociais por causa desses processos de socialização. Esse processo de socialização acontece ao longo de toda a vida do indivíduo, mas ele é mais forte na infância porque na infância ele está atuando sobre o corpo da criança e através de várias instituições para garantir esse processo. Também para determinar a que igreja a criança vai ser submetida, que tipo de educação ela vai receber, em que modelo de família está inserida, a que tipo de cultura está exposta de modo geral. A proposta do Simmel é que a forma da socialização é sempre lúdica independente do seu conteúdo, isso explicaria porque que é possível se socializar através do trabalho. Mesmo se o conteúdo é o trabalho, a forma será sempre lúdica.

Quando a gente fala de socialização, tem que considerar que as crianças se socializam, mas não é sempre em relação aos adultos, mas também em relação aos seus pares. E que elas tem uma autonomia relativa. Esse processo também se constrói entre pares, entre as próprias crianças, mas é construído em um universo, digamos assim, tem como ponto de partida uma construção que é dos adultos. Os adultos constroem primeiro, quando a criança chega a cultura já está pronta, a sociedade está pronta, já está tudo preparado para recebê-la. A prova disso é que nós construímos brinquedos para as crianças, os brinquedos industrializados, a gente não para de pensar em brinquedos educativos que possam estimular a criatividade. E a criança pega uma caixa de papelão e larga todos os outros brinquedos.

O mais importante desse artigo sobre as crianças Tentehar-Guajajara, se você me perguntasse, é que há na infância indígena o aspecto que se assemelha a criança camponesa, mas que é absolutamente distante da criança urbana que é a autonomia embora ela seja sempre relativa e eu defenda a existência de uma autonomia das crianças, mas não dá autonomia de um universo ou cultura infantil.

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