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Elas têm voz e vez: a participação da criança na construção da prática pedagógica na educação infantil

Por Caroline Duarte e Lianna Arraes

Tudo começou com um projeto de extensão em que a professora Karla Bianca Freitas de Souza Monteiro e mais duas bolsistas ficaram dois anos e meio trabalhando em duas creches municipais, e o fato de que nessas escolas as crianças não eram olhadas como um sujeito a qual não tem voz e nem vez, começou a inquietar a pesquisadora Karla. A partir daí, ela ingressou no doutorado em educação com a perspectiva de criar um projeto no âmbito da pesquisa com crianças,  que apesar de ser uma abordagem que já acontece há décadas, no Maranhão não se tinha uma pesquisa que desse total voz às crianças,  ao que se sabe, a tese da professora foi a primeira a ser desenvolvida na cidade de Imperatriz.

Partindo desse olhar específico de como as crianças são inseridas no currículo, a professora e as bolsistas criaram  recursos metodológicos para que cada menino e menina falasse sobre seu cotidiano na escola, pois elas não são um sujeito passivo que recebe o conhecimento pronto e elaborado, ao contrário, são um sujeito que interage e que produz cultura, e como produtoras de cultura estão em movimento e podem interferir nessa construção. A professora verificou  as possibilidades de intervenções, o que a despertou para o  estudo na área.

*Currículo: representa o conjunto de saberes e experiências que são estudados e vivenciados no cotidiano da prática pedagógica.

Leia abaixo a entrevista completa com a professora Karla.

Como a Pedagogia participativa modifica a rotina de produção do professor na sala de aula?

Ela modifica completamente, porque em uma pedagogia tradicional o professor é o detentor do conhecimento, é aquele que fala e tem autoridade, a criança apenas obedece. Em uma pedagogia participativa, existe aquilo que chamamos de escuta, que somada a negociação formam os pilares da participação. Então, o que se constata nessa prática, é que o professor não observa apenas os saberes socialmente construídos, ele abre espaço para perceber os conhecimentos prévios das crianças, quais são os saberes, as experiências que elas trazem do seu cotidiano familiar, e isso oferece uma base para que o professor possa trabalhar. Dessa escuta, a criança pode participar do planejamento, pode ser autora nos projetos didáticos pedagógicos, podendo participar da organização da turma. A criança deixa de ser passiva e silenciada e passa  a construir uma pedagogia ativa, onde ela fala, produz, e têm espaço para se desenvolver nas suas mais diversas dimensões. No espaço escolar tradicional, não foi dado voz à criança, o professor acha que uma criança de 3 anos não pode contribuir. E a pedagogia da participação vem dizer que é mais do que escutar, é se colocar à disposição do outro para ouvir, e você se coloca em igualdade naquele momento de escuta, o professor vai criando os elementos para dar voz a essa criança, para que ela fale das suas inquietações, indagações, diga o que está lhe agradando e desagradando e nesse movimento a criança  vai participar do currículo e a prática pedagógica vai ser de fato completa, atendendo as expectativas, necessidades e peculiaridades da criança.

*A escuta – uma prática educativa, cujo papel do professor é agir possibilitando a criança se expressar livremente na sala de aula. Escutar, nesse sentido, é dar vez e voz aos alunos que se encontram no processo de ensino-aprendizagem, caracterizando assim, uma escuta sensível.

Qual a maior dificuldade encontrada por você quanto ao professor trabalhar com a didática da participação da criança no processo de aprendizagem?

Em todos os meus estudos eu  não encontrei ainda, de fato, muitas práticas participativas, o que é mais comum e tenho encontrado é, uma educação silenciadora, tradicional. A própria roda de conversa que é uma metodologia básica de qualquer  pedagogo da educação infantil, é difícil para alguns professores imaginar a negociação,  os contratos didáticos e projetos. Nos estudos que eu tenho feito, percebo que não tem sido dado voz à essas crianças, mas não podemos generalizar, existem instituições com casos de professores que, mesmo desconhecendo essa ideia de pedagogia da participação,  entendem que as crianças dentro da pedagogia da infância são sujeitas do processo, mas isso ainda é muito incipiente diante de um contexto mais geral.

*Roda de Conversa – é uma possibilidade metodológica para uma comunicação dinâmica e produtiva entre alunos e professores desde a educação infantil. Essa técnica apresenta-se como um rico instrumento para ser utilizado como prática metodológica de aproximação entre os sujeitos no cotidiano pedagógico.

Quando se dá a ideia da criança poder participar nas escolhas para a rotina pedagógica foi notado algum receio dos professores em perderem sua autoridade ou parte dela, dentro da sala de aula?

Eu percebo que existem dois elementos, um é o medo de perder um pouco do controle da turma, porque as pessoas acham que na escola, as crianças têm que ficar quietas, sentadas e organizadas. Mas criança nenhuma aprende presa, elas aprendem em movimento, o cérebro delas funciona melhor quando estão interagindo, se movimentando. Mas é difícil para os professores mais tradicionais entenderem esse movimento, eles entendem que quanto mais paradinhos, mais concentrado, a criança aprenderá melhor, sendo que a própria psicologia mostra que dependendo da idade da criança se tem apenas de 5 a 10 minutos de concentração, todo o restante é distração, e a criança vai caindo numa certa ociosidade, porque o professor não cria outros elementos para que ela possa se envolver. Outro elemento que eu também percebo é que os professores têm dificuldades de se planejar para isso, porque foram ensinados a fazerem atividades coletivas, por exemplo, vão para o lanche em fila, fazem as atividades todos ao mesmo tempo. Nesse contexto, a pedagogia da participação orienta os grupos de atividades, que funciona assim, um grupo com massa de modelar, outro com um joguinho, o terceiro usando tinta, e o quarto fazendo atividade escrita, e depois é feito um rodízio entre esses grupos e assim não se cai no tédio e não se perde o controle, porque as crianças estão interessadas em fazer aquilo e fazem com convicção de que é bom e divertido, e não estão sendo submetidos a meia hora de atividade desinteressante. O professor que não é formado dentro da pedagogia da participação não consegue planejar a sua rotina dessa maneira, porque ele acha que esse controle é fundamental e por isso, não quer perdê-lo, mas por outro lado, ele também apresenta dificuldade para planejar o movimento dentro da sala, por achar que é desordem e que as crianças não estão aprendendo. A comunidade acadêmica, o professorado de modo geral, tem dificuldade em compreender que a criança aprende mais quando está se movimentando.

Os pais acreditam na pedagogia participativa, ou há um paradigma de que essa pedagogia não é suficiente?

Na minha tese de doutorado eu fiz um trabalho específico com as famílias, e ouvi professores e crianças. As famílias apostam e acreditam muito na escola, então, embora os professores achem que a família não acredita, elas respeitam os professores e dependendo do trabalho que aquela escola faça, tem-se certa credibilidade para a família. O que acontece muitas vezes, é que os professores não informam adequadamente a família o que está sendo desenvolvido na sala de aula. De maneira geral, os pais também vieram de uma educação tradicional, em que o paradigma era do silêncio e não da fala, e para transformar isso não é fácil, entretanto a escola precisa formar a criança e concomitantemente formar famílias, não se transforma somente a criança, formamos toda uma sociedade. Por isso que se fala em educação transformadora, porque nesse movimento a gente educa a criança, a criança educa a família, e a família que está dentro do meio social vai fazendo as transformações que forem necessárias.

Na sua pesquisa você conclui afirmando que “Convém pensar em uma pedagogia na qual as crianças não fiquem à mercê dos interesses dos adultos”. Essa Pedagogia valeria para as escolas tanto públicas, como privadas?

Eu não tenho nenhum estudo em escola privada, mas tenho a percepção de que a diferença notada é que na escola privada existe uma pressão muito maior da família por produtividade e aprendizagem, do que na escola pública, isso pelo fator econômico. Na pública os pais nem sempre tem a consciência de que aquela instituição pública, tem a obrigação de dar um retorno, então muitas vezes eles são mais passivos. Na escola privada não, se a criança de três anos não chegam com uma atividade escrita em casa, o pai diz que vai tirar o filho da escola porque não tem produção. Esse caráter mercadológico das escolas privadas é que muitas vezes impedem o desenvolvimento dessa pedagogia da participação. Na realidade, em alguns casos, a escola tanto particular, quanto pública, tem uma boa abordagem teórica e um projeto pedagógico muito interessante, mas na prática, essas instituições se sentem amarradas, porque outras escolas tradicionais estão dando resultados específicos, que para a família, são esses resultados que são vantajosos, e nesse contexto a escola se sente engessada no processo. Muitas escolas até tem vontade de implantar uma nova pedagogia, mas têm receio em como a família vai entender esse processo. A formação que se dá na escola pública, também tem que ser dada na privada, e os pais têm que ir às reuniões, conhecer a proposta pedagógica, o método da escola e apostar nessa pedagogia. A criança está brincando, está na roda de conversa, está se movimentando e ao final daquele período, certamente ela estará com maiores aprendizagens do que as crianças que  estão paradinhas.

Como seriam as nossas crianças se todas as escolas incentivassem a pedagogia participativa?

Eu vou além, acho que nós teríamos uma sociedade muito melhor. Porque eu sou filha de uma educação tradicional, onde reinava o silêncio, e ainda assim, eu e meus contemporâneos, estamos construindo uma sociedade participativa, em que os mais jovens estão inseridos. Então, nós conseguimos construir um movimento de libertação, de voz e de vez. Portanto, se essas crianças quando educadas sem essas amarras do silêncio forem ouvidas em seus espaços pedagógicos, e desde o início elas tiverem essa oportunidade de elaborar um projeto com a participação ativa, teremos uma sociedade de sujeitos mais críticos, mais flexíveis, mais atuantes, mais agentes da participação, Então, certamente essa educação vai realizar e gerar mudança na sociedade, além da própria formação do sujeito que será mais crítico, mais reflexivo e que terá mais condições de falar e saber ouvir. E dentro da pedagogia, todos são iguais, todos têm direito a voz e vez. Trabalhando a diversidade em toda a sua complexidade, nós vamos trabalhar a autonomia que é fundamental, criar sujeitos que sejam capazes de construir as bases do seu futuro e não ficar na dependência de famílias, de professores e de tantos outros.

Qual é a maior perda por esse tipo de prática pedagógica não está sendo exercida nos dias de hoje?

Não estamos ouvindo aqueles que são mais importantes no processo, o sujeito da prática educativa. Nós negamos a voz a esses sujeitos, então, é como se nós só víssemos apenas um lado da moeda. Na realidade, temos a versão de um aspecto do trabalho, a partir da percepção do adulto. Em decorrência, não há um olhar sobre a perspectiva do sujeito que é a própria criança. E como decidir sobre o futuro de alguém, sem ouvi-lo? É sempre um conjunto de imposições e que nem sempre representam as especificidades e peculiaridades daquele sujeito.

Gostou da entrevista e gostaria de uma leitura mais aprofundada sobre o tema? Então, confira  o e-book com o recorte da tese de doutorado da professora Karla que se encontra no link: www.editorarealize.com.br/revistas/ebook_fiped/trabalhos/ebook_fiped8.pdf

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